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Temos tudo na ponta dos dedos

Quando não haviam serviços de streaming e a internet mal tinha atravessado o Atlântico, nada mais havia senão ver o que dava na televisão, se apanhássemos a tempo, ou ver repetidamente as mesmas cassetes de vídeo.

A minha cassete preferida era a da Cinderela ou, visto que era dobrada em Português do Brasil, a Gata Borralheira.

Não sonhava com príncipes nem castelos, mas sim com a varinha mágica da fada madrinha que parecia deitar um pó cintilante, em fio.

Quantas vezes agitei um pau no ar, a fazer de varinha... Quase posso jurar que os meus olhos viram dele sair o tal pó cintilante. Não, não eram purpurinas. Purpurinas são artefactos para fingir magia. Mas aquilo, ali, aquilo era magia a sério.

Cheguei a pensar em formas de conseguir fazer isso acontecer. De conseguir fazer uma varinha mágica com aquele pau. Ou com um tubo em PVC, daqueles brancos que se usavam nas ligações eléctricas exteriores. Era só enchê-lo com purpurinas a imitar magia. Mas nunca fiz nada. Fiz só na minha cabeça. Na minha cabeça faço muitas coisas.

Lembro-me também de uma cassete gravada com uns desenhos animados meio estranhos, umas "pessoas" cheias de ar, como balões, e um "mau" que lhes atirava alfinetes de costura gigantes para as rebentar... Também tinha a sua graça. Ainda tenho na cabeça os sons desses desenhos animados.

A pior coisa das cassetes que gravávamos da TV era aparecer um programa ou filme melhor ou mais importante e gravar-se por cima do antigo.

Contra a minha vontade, por cima das pessoas-balão ficou a ida do J. Q. a um programa do Júlio Isidro. Ou a um do Carlos Cruz, já não cobsigo precisar. Mas andei para morrer.

Quando não haviam serviços de streaming ia com os meus pais ao clube de vídeo e com sorte podia escolher uma cassete. Com sorte de eles me deixarem e com sorte de estar disponível a que eu queria.

Anos mais tarde e quando ainda não haviam serviços de streaming eu e a L. íamos ao clube de vídeo alugar filmes de terror em nome do irmão dela porque éramos menores e os filmes eram para +18... (e porque a senhora do clube de vídeo a conhecia, senão de nada servia levar o cartão de outra pessoa)

Passámos muitos serões em casa da avó S. a ver esses filmes de terror. Sempre à noite, depois dos avós irem para a cama. No escuro, sentadas à mesa, coladas à TV com o som no mínimo audível.

Era assim antes de termos tudo na ponta dos dedos. Tínhamos que planear se queríamos ver alguma coisa. Dedicar-lhe tempo. Ter paciência. Hoje já nem temos paciência para quando os canais demoram a passar, quanto mais para esperar por um filme ou planear ver uma série às 19h na RTP2.

Tínhamos muito menos escolha, estávamos limitados à programação do canal, controlados pelo relógio e ver qualquer coisa de que gostássemos era um acontecimento. Como os Jogos Sem Fronteiras, a Grande Noite, os Malucos do Riso, a Malhação, o Bora Lá Marina, a Navegante da Lua, o Camilo & Filho Lda, o KITT, o Rex, o Rei do Gado, o ALF, as Marés Vivas, as Lições do Tonecas, o MacGyver, a Lassie, os Simpsons, o Nós os Ricos, os Trapalhões em Portugal, os Morangos com Açúcar, o E.T., o Hugo, até o Contra Informação.

Ou víamos àquela hora ou então não víamos. Exceto se alguém gravasse ou se houvesse uma repetição. Mas só se gravavam coisas mesmo muito especiais. As cassetes não eram baratas.

Tínhamos muito menos escolha, muito menos possibilidades, muito menos diversidade. Por isso dávamos mais importância, víamos com mais gosto e por isso também se faziam programas com outra dedicação.

Agora nunca dá nada com jeito. Nada nos satisfaz como antigamente.

Se calhar agora temos demasiada escolha, demasiadas possibilidades e diversidade. E, por isso, damos menos importância, não apreciamos tanto e também já não se fazem programas com a mesma dedicação.


Hoje temos tudo na ponta dos dedos e, mesmo assim, nada nos chega.

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