Avançar para o conteúdo principal

Monte de terra com ervas

Descreve o que vês da janela do teu quarto. Era este o mote para uma composição. 

A professora de Língua Portuguesa teve uma boa ideia, pôr os alunos a contar uns aos outros o que todos os dias contemplavam através a sua janela.

Uns certamente escreveram que viam a rua, os carros e as bicicletas a passar. Outros, um jardim, com árvores e passarinhos. Outros ainda um parque infantil onde viam os outros meninos brincar. Uns viam a casa do amigo ou o quintal do vizinho. Viam carros, viam lojas, viam pessoas.

A ideia tinha tudo para dar bons frutos não fosse uma suposição básica: a de que todos os alunos de facto viam coisas minimamente interessantes através das janelas dos seus quartos. Coisas das quais se poderia dissertar mais do que meia dúzia de palavras...

"Um monte de terra com ervas".

Era isto que eu tinha para escrever naquela composição, porque era isto que eu via: um monte de terra com ervas.

Não era um jardim, era um monte de terra com ervas.

Não eram pessoas, era um monte de terra com ervas.

Tempos houve em que via as cabras do J. no meio das oliveiras. E o J.. E o cão, do qual tinha um medo de morte. Ainda me lembro do susto que apanhei um dia quando entrei no barracão escuro e, de repente, o cão me ladrou vindo sabe-se lá de onde. Não se via, estava tudo escuro. Também me lembro do cheiro das cabras, das bilhas do leite e do copo de leite, ainda morno, que um dia me deu e que não consegui beber porque o leite sabia ao cheiro das cabras.

Mas este texto não é sobre as cabras do J.. É sobre o monte de terra com ervas que mais tarde ali "apareceu".

Não podia escrever que da minha janela via um monte de terra com ervas. Bem, poder, podia, mas não sei qual seria a reacção. Optei por dizer que via uma "paisagem natural" que de natural só tinha as ervas mesmo porque a terra foi alguém que a amontoou.

Se voltasse atrás talvez escrevesse que ainda via as cabras do J.. E o J.. E até o cão. Que os via sem os ver realmente. E os cheirava sem cheirar de verdade. Seria aquele ver que está na nossa cabeça e aquele cheirar que se aninha lá também. E o ouvir. E o sentir. Até o sabor do leite, que sabia ao cheiro das cabras, está na minha cabeça ainda. E o copo morno.

Que as memórias nunca se apaguem e ajudem a manter tudo vivo na nossa cabeça. O J., as cabras e mesmo o monte de terra com ervas. Já nem esse existe, mas continua cá.


Sejam felizes, preservem as memórias e... sonhem!

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A felicidade que pode ser perdermos a clareza de ideias

Os velhos, às tantas, não dizem coisa com coisa. Misturam assuntos. Dizem que fizeram isto e aquilo sem terem feito nada. Não sabem onde estão ou o que estão lá a fazer. Dizem que falaram com A, B ou C, que já estão a fazer tijolo há muito tempo. Que foram aqui e ali sem na verdade terem saído do lugar. Julgam que os vão levar para casa em breve. Parecem estar noutro mundo ou na lua. Nem que seja apenas por breves instantes. Segundos de trevas que parecem interromper a luz. Ou será ao contrário? Talvez seja da velhice. Talvez seja dos medicamentos.  Talvez. Talvez seja sem querer mas, em certa medida, propositadamente. Que também eu perca a clareza e o discernimento quando eles já não me trouxerem benefício algum.

Inveja...

Há quem diga que a inveja é uma coisa muito feia...! Eu digo apenas que pode ser um ponto de partida para se ambicionar ter, ser ou fazer mais alguma coisa. Claro que, como tudo, quando é demais não se torna saudável, mas cabe a cada um controlar os seus impulsos invejosos. Querer ter, ou ser, aquilo que o outro tem, ou é, pode levar-nos a uma luta constante e até produtiva para nos superarmos e conseguirmos mais. Por outras palavras, a inveja boa é uma ambição controlada, que nos leva a trabalhar para alcançar determinados objectivos (valham estes a pena, ou não, aos olhos dos outros). Até porque aquilo que os outros pensam só devia ter importância até certo ponto. Até ao ponto de passagem entre o que nos torna pessoas melhores e o que faz de nós fantoches nas suas mãos. Há que diga que a inveja é uma confissão de inferioridade...Eu digo que é ambicionar alcançar determinado objectivo que nos faz sentir melhor, seja porque for... Não necessariamente porque "Se fulano-assim-assim ...

Dilemas psicológicos...

Quem nunca teve nenhum? São batalhas travadas no canto mais encondido, no sulco mais profundo do nosso cérebro que nos fazem a cada micro-segundo sentir uma felicidade tranquilizadora ou um aperto no coração... Porquê? Porque é que o nosso pensamento não pára antes de sentirmos o tal aperto? Porque não ficamos tranquilos de uma vez? Porque é que depois de sentirmos uns momentos de alívio caem sobre nós os mesmos medos avassaladores? Porquê? Fará sentido tudo isto? Passarmos o dia ansiosos que ele acabe para, pelo menos durante o sono, não termos esses dilemas? Acordar durante a noite a pensar neles? E eles voltarem em força com os primeiros raios de sol? O ser Humano tem a espectacular capacidade de se poder contrariar a si próprio, então... Porque não? ;) A cabeça manda, o corpo obedece. Para o bem. E para o mal... Vamos por de lado todos os pensamentos negativos, que nos deixam em baixo e a olhar para o infinito com a cabeça a trabalhar a 1000 à hora! Pensamento positivo SEMPRE! Pa...