Tira-se o arroz do tacho e ficam meia dúzia (mais!) de bagos de arroz no fundo. Come-se o que se tem no prato - até se comeu tudo - mas ficam uns baguinhos de arroz. Vai tudo para o lixo ou pelo ralo do lava-loiça abaixo.
Esses bagos de arroz, que parecem insignificances, ao fim de um tempo correspondem a um prato cheio de arroz. E não é preciso muito.
Faz-se uma panela de arroz e sobra. Quem nunca? Há três opções em primeira instância:
- guardar
- deitar fora
- guardar para deitar fora mais tarde
Guarda-se na esperança de ainda o comer; deita-se fora porque se sabe que já não se vai comer; ou guarda-se na esperança de ainda o comer (para descansar a consciêcia), mas sabendo que é certo que vai parar ao lixo dentro de dias.
Esses restos de arroz não comido falecem num Tupperware no frigorífico (para quem ainda os usa), outros falecerão numa caixa plástica do chinês e outros numa de vidro. Só muda o caixão, o morto é morto em qualquer um.
Em criança diziam muitas vezes (a mim e aos outros): "Come lá esse restinho. Há meninos com fome que não têm o que comer". Mas uma pessoa naquela idade não entende; tanto se lhe dá se os tais meninos têm fome, felizmente não sabe o que isso é.
Quando se cresce é diferente, o bagos de arroz que sobram passam a ser desperdício. O dinheiro que as coisas custam fazem-nos pensar, tal como o trabalho que dão a fazer.
Quando se cresce, a frase repetida na infância sobre os meninos com fome já faz sentido e já se pensa duas vezes antes de deitar comida fora. Mas pensar só não chega.
Bem sabemos que comer aqueles bagos de arroz não enche a barriga aos outros, mas limpa a consciência.
Em Gaza, vi uma mulher desesperadamente a apanhar bagos de arroz crus do chão, no meio da terra, da poeira, de sei lá que mais. Apanhava-os num desespero porque para ela eram ouro, não lixo. Eram bem menos que aqueles que me sobram no prato, mas valiam bem mais. Foram certamente a diferença entre comer pouco ou não comer nada.
Nunca mais deixei um bago de arroz no prato. Pelo menos não com a mesma leviandade. Às vezes presisamos de um banho de realidade para dar valor às coisas. Aqueles bagos de arroz que nos sobram não vão alimentar quem deles mais precisa, mas também não devem ser desperdiçados. Valem bem mais do que a importância que lhes damos. Valem bem mais que dinheiro. Valem bem mais que trabalho. Valem sempre bem mais aos olhos de quem deles precisa. Talvez só aí valham o seu real valor - são vida.
São bagos de arroz mas também são esperança. E a esperança não se deita fora.
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