Brinquei muito sozinha. Não tenho irmãos e a prima mais próxima em idade só mais tarde se tornou minha amiga. As outras primas a seguir estavam longe, só brincávamos duas vezes por ano e a outra prima só apareceu 8 anos depois de mim (o que é uma seca quando se quer brincar a sério. Sim, brincar a sério exige uma idade para tal; antes disso não se sabe brincar a sério, só se brinca a brincar e isso não tem graça nenhuma). E sim, isto de ser família não significa que as pessoas estejam todas próximas e muito menos que gostem todas umas das outras (às vezes só fingem que gostam e outras tantas gostam mas, de repente, deixam de gostar).
É por isso que se diz que os amigos são a família que escolhemos. A que nos calha em sorte à nascença nem sempre nos enche as medidas e temos que mandar vir de fora.
Voltando ao ponto.
Brinquei muito sozinha.
Não tenho irmãos, as primas estavam longe (emocionalmente, em espaço ou em idade) e, por isso, grande parte do tempo era passado a brincar sozinha. Puxei pela imaginação, fiz barracas com caixas de cartão, caixas de madeira (da fruta), plásticos, canas, paus, cadeiras, mantas e xailes. Foram casas, lojas, cafés e tendas. Foram tudo aquilo que eu quis que fossem, bastava amontoar as coisas e olhar depois para elas. Falava sozinha, perdão, falava com os que estava na minha casa, com os clientes da minha loja e do meu café. Falava na minha cabeça. Aquele falar que nos faz mexer os lábios, gesticular mas que raramente gera algum som (menos quando era para cantar as músicas das telenovelas brasileiras com todo o elenco que de repente estava ali à minha frente, no quintal da tia L). Voltando ao ponto. Falava e ouvia as suas respostas, servia-os e cobrava os cafés. Mas a parte gira era a de montar as barracas, não tanto a de brincar elas. Essa parte durava menos. Mais depressa a desmontava para fazer outra a seguir do que ficava a brincar nela. Aprendi física e matemática sem sequer me aperceber. E aprendi que depois de brincar se arrumam as coisas, isso ou ninguém jantava naquele dia tal era a confusão criada na sala da avó S.
Passei horas a brincar com o Lego (balde enorme que o meu padrinho me deu e que ainda existe, aliás, não há muito tempo brinquei com ele). Sempre odiei as construções pré-feitas, pré-pensadas. Essas nunca tiveram graça nenhuma. Giro é pegar num amontoado de peças soltas e fazer nascer dali qualquer coisa que não esteja já pré-preparada. Sempre preferi fazer casas. Duas filas de peças amarelas a fazer a barra (ou azuis, conforme o tamanho da casa, porque tenho mais amarelas) e 3 filas de peças brancas a completar a parede. Casa com recheio ao pormenor, muitas vezes com uma escada e com o telhado possível (as peças vermelhas não são assim tantas e, além disso, se a casa tiver telhado não consigo ver o seu interior), muitas vezes leva só uma fila de peças vermelhas à volta a fazer de conta. O som de despejar o balde em cima de uma manta é música para os meus ouvidos. Continuei a aprender umas quantas coisas sem me aperceber, como lógica.
Benefícios de ser criança sem ter internet, computador ou telemóvel. Éramos forçados a entreter-nos com o que havia.
Também brinquei muito acompanhada.
Brinquei com a L, com a outra L e com a T e, mais tarde, também brinquei com a V. Brinquei também com o vizinho G e mais ou menos com o P e com o J.
Parece que sempre tive uma certa tendência natural para querer controlar tudo. Acho que controlava principalmente as brincadeiras com as L. Por nenhuma razão em especial, talvez por serem com quem brincava mais. Não tinha noção disso, mas parece que as minhas avós conversavam sobre o assunto.
Dizia a minha avó S à avó A:
Ela é que manda nas outras e eu digo "Oh Cristina, não sejas assim!..."
Hoje em dia, sabendo isto e com mais de 30 anos em cima, consigo claramente perceber esse meu comportamento em criança. Continuo a ter necessidade de controlar as coisas à minha volta, não no sentido de mandar nas pessoas, mas sim de ter as situações debaixo de olho e, claro, a serem feitas 'como deve ser' (que é como quem diz 'à minha maneira').
Quero, posso e mando. Não. Não é disso que se trata.
Antes que me crucifiquem: note-se que ninguém disse que mando ou mandei os outros fazerem as coisas por mim. Fazemos e fizemos sempre todos mas, nas situações em que sinto ou senti que claramente é ou foi preciso alguém dar um passo e liderar, e sempre que tenho ou tive eu conhecimentos e condições para tal, quem dá e deu o passo fui eu... Nem ninguém foi mandado à bruta ou contra a sua vontade. Bem, em criança talvez, é uma questão de perguntar às L 😅
Acho que isto tudo me ensinou muito. Aprendi muito a brincar sozinha. Aprendi muito a brincar acompanhada. Aprendi muito a brincar.
Hoje não se aprende a brincar, simplesmente porque já não se brinca da mesma forma.
Desenvolvem-se outras capacidades, é certo, mas algumas basilares ficam para trás. E são tão importantes!...
Faz falta brincar com qualquer coisa que puxe pela nossa imaginação, que exercite as nossas capacidades. que nos ensine.
Não faz assim tanta falta ver videos no YouTube. Ver os outros a jogar ou a dizerem baboseiras. Não se retira nada de bom daí.
A minha avó S não queria que eu quisesse manipular a brincadeira, que mandasse nas outras. Mas isso era apenas eu a trabalhar a minha personalidade.
Foi isso que fez de mim um indivíduo e não uma tentativa de cópia de um qualquer youtuber ou tiktoker manhoso que come canela às colheradas porque "é fixe" e que, graças ao tempo em que nasci, ainda não existia.
Foi isso que me diferenciou, foi assim que construí a minha identidade, a minha personalidade.
E isso faz falta.
Sejam felizes, ensinem os putos a serem bem comportados só porque sim, não abusem dos tablets e telemóveis como se fossem chuchas para os calar e... Sonhem, se ainda forem capazes.
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