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Se "O" 25 de Abril fosse agora... não era.

Onde é que estavas no 25 de Abril?

Pergunta da praxe. A resposta mais ouvida é "a saltar do direito para o esquerdo". Mas muitos, nem isso.

A verdade é que alguns estiveram lá, fizeram a revolução, outros não estiveram mas viveram esses tempos e, a partir daquele dia, todos podemos colher os seus frutos. Incluindo nós, que ainda andávamos a saltar do direito para o esquerdo e até todos os outros que nem isso faziam ainda.

 

Foi uma conquista e pêras.

Esta coisa da liberdade, que damos como garantida e à qual não damos importância nenhuma, é o que me permite escrever este texto sem ir presa. É a mesma coisa que permite discussões políticas de café, na maioria das vezes com um cheirinho a insensatez. É ainda o que nos deixa andar despreocupados, sem olhar por cima do ombro a todo o instante. Mas também é algo que nos dá muita responsabilidade. Liberdade não é libertinagem. A liberdade dá trabalho e exige respeito, mesmo que quase ninguém se dê conta disso.


Hoje, teria sido muito difícil de combinar.

Esta coisa do "bora lá todos fazer uma coisa qualquer",  hoje em dia, serve para pouco mais do que jogos de futebol, copos ao sábado e jantaradas. Já ninguém se dá ao trabalho de fazer mais, exceto meia dúzia de liberinos.

Em 74 não havia SMS, e-mail, chats... Mas havia vontade. Havia motivação. E com motivação tudo se faz. Hoje, perder-se-iam anos de vida a decidir em que plataforma se iriam combinar as coisas. Um grupo no WhatsApp ou no Facebook? Em ambos, talvez fosse melhor, não fosse alguém estar demasiado atento ao seu umbigo e não ver a notificação. E ficaria para quando? "Epa nesse dia não porque tenho padel". E toda a gente sabe que o padel tem prioridade máxima sobre todas as outras coisas. O padel não, o umbigo de cada um é mais importante que os umbigos de todos.

A que horas? "De madrugada!? Mas estás parvo? Já bem basta ter que me levantar cedo para trabalhar, agora ainda mais para isso!" As pessoas têm mesmo uma certa dificuldade em ver para além do seu umbigo. Lutar pela liberdade não é nada quando comparado com uma noite bem dormida ou qualquer outra coisa que lhe dê prazer imediado. Já ninguém pensa a longo prazo.

 

Independentemente do dia e da hora, uma coisa é certa: nunca teria sido a uma quinta-feira. 

Não sendo uma manifestação, mas uma revolução, ainda assim, na perspectiva de poder vir a não trabalhar nesse dia, hoje celebraríamos certamente o 26 de Abril. Não perdemos uma oportunidade de fazer um fim de semana alargado, não importa a razão, o que importa mesmo é não trabalhar. Por isso é que quero aquela coisa da semana dos 4 dias, para continuar a não produzir nada em menos tempo.

 

Não poderia ser a rádio, nem poderiam ser músicas a marcar o passo.

Já quase ninguém faz rádio durante a noite, ficam a musiquinha e as publicidades a passar, mais uns quantos programas repetidos em loop. E que música escolheríamos? Ui... Cairíamos certamente em meia dúzia de musicas daquelas que soam todas ao mesmo, sem conteúdo, mas que toda agente gosta porque estão na moda. E era uma vez as mensagens nas entrelinhas, as mensagens subliminares, a faísca que faz pegar o lume.

O melhor seria fazer também uns post no X e uns vídeos no TikTok com uma hashtag qualquer que fosse possível identificar, tipo #estamosjuntos ou outra coisa assim original e que demonstrasse o quão revolucionários nos sentiríamos naquela hora tardia do dia, o quão unidos estaríamos e outras cenas dessas que nos fariam acreditar que estávamos no Braveheart. O primeiro post seria qualquer coisa como: "Eu sofro horrores, tu não conheces a minha vida. Não tens nada a ver com ela, vai para a c* da tua mãe. A tua opinião não me interessa. Vozes de burro não chegam ao céu. Sou bué da forte. Stay strong". E isto quereria dizer que sou um filho bastardo da vida, oh mundo cruel e isto tem tudo a ver com a Revolução porque me sinto um revolucionário enquanto o meu coração, muito mais que a cabeça, me manda escarrapachar estes poemas numa rede social.

 

Ninguém iria conseguir consenso.

Hoje em dia as pessoas não gostam de dar razão aos outros, mesmo que a tenham. Ninguém dá o braço a torcer, ninguém ouve a opinião do outro, a sua motivação, as suas razões.

Concorda-se com quem diz o que queremos ouvir, não com a voz da razão. Todos emprenham pelos ouvidos e todos vão que nem carneiros atrás do carneiro maior, só porque este disse à boca cheia que aqueles de quem não gostamos "vão mas é para a terra deles!".

Quando há um carneiro maior, desses que emprenha os outros, metade do povo emburrece e passa de carneiro a burro num ápice. Esquecem-se de que não estão sozinhos no Mundo, esquecem-se que para haver um presente e um futuro, também já houve um passado. Esquecem-se que também têm cabecinha para pensar por eles próprios. Talvez devessem voltar às aulas de História e ver notícias a sério em vez de enfiar os cornos no Facebook a cada contração do diafragma e acreditar que partilhar 10 vezes a imagem da santinha lhes vai trazer uma coisa boa na vida.

 

Não teria sido secreto.

Ninguém aguenta um segredo, ninguém se controla e alguém ia dizer a um amigo "Não digas a ninguém, mas...". E o amigo, coitado, sofrendo do mesmo mal, contaria a outro amigo, sempre com a segurança do "Não digas a ninguém". Isto não é bem a teoria do 'traz outro amigo também', não é assim que funciona. Toda a gente sabe que o "Não digas a ninguém" é como o "123 fulano, salva todos" das escondidas. Depressa a notícia ia chegar aos ouvidos de quem não devia e tudo porque em vez de se fechar a boca, se disse a toda a gente em vez de não se dizer a ninguém.

 

Simplesmente, não teria sido.

O 25 de Abril, o fim da ditadura em Portugal, a Revolução dos Cravos, o Dia da Liberdade, o dia em que tudo se conseguiu sem derramar uma gota de sangue, o dia no qual todos devíamos fazer uma introspecção sobre tudo aquilo que nos trouxe ou nos devolveu, foi o último grito dos portugueses com tomates. Daqueles que descendiam dos descobridores e ainda lhes corria nas veias uma réstia de puro sangue luso. 

Os portugueses de hoje aceitam tudo como aparece porque "deixa estar, está bom assim". Está mal mas "deixa estar", está caro mas "é assim", há cunhas mas "é assim", ficou mal feito mas "está bom assim", é injusto mas "é assim". Já ninguém se dá sequer ao trabalho de perguntar "Porquê?", quanto mais de fazer algo para mudar. Se a invasão da Rússia tivesse sido a Portugal e não à Ucrânia, não teríamos durado uma semana. Íamos resignar-nos à evidência de que o Mundo é cruel, "é assim", "vieram invadir-nos temos que nos sujeitar" e "nao podemos fazer nada contra isso". E que tal lutar? Enfrentar a situação que nos puseram à frente? Não aceitar tudo "porque sim"? Não nos resignarmos? "Lutar pelo nosso país? Mas estás parvo?? Desde que não me rebentem com a casa não quero saber. Quem quiser que vá, a mim é que não me apanham nisso." O primeiro passo desse espécime de inteligência suprema que se acha sempre mais esperto que os outros, conhecido como 'tuga comum', era ir a todos os médicos e mais alguns até conseguir um atestado médico. Coitado, tem pés chatos.

Por tudo isto e certamente mais uma dúzia de coisas que escaparam, se o 25 de Abril estivesse para ser agora, nunca seria nada. Ficávamos em ditadura porque está bom assim, deixa estar. Vou lá agora dar-me ao trabalho, quem quiser que faça, eu não estou para me chatear com isso. Se o 25 de Abril estivesse mesmo para ser em 2024, este texto nunca teria sido publicado, algum informático moderno 'do Salazar' teria traçado tudo a 'lápis azul' e eu estaria, neste momento, com os costados na choldra não sem antes ter levado um correctivo (ou dois) da PIDE. Ainda por cima uma mulher "Olha esta, acha que pode fazer o quer, faz-lhe falta um marido que a ponha na ordem".

 

Viva o último dia em que nós, portugueses, com vontade, motivados, tivemos coragem.

Ah! Claro, nada de cravos que já ninguém vende flores, muito menos as dá. Mas também não haveria armas de fogo para os colocar no cano. Certamente teríamos os telemóveis a postos para filmar uma desgraça eminente e acabaria alguém a levar com tinta em cima. A lata é a espingarda e a tinta, o cravo? Não me parece. Enfiaríamos então uma sardinha num submarino.

Que hoje e que sempre estejamos 'em Grândola', terra fraterna, com igualdade em cada rosto (ou equidade!) e onde o povo, sensato, informado, participativo, seja quem mais ordena.

  

Sejam felizes, aproveitem a liberdade, respeitando sempre o outro mas, pelo amor da santa... Não se deixem emburrecer nem emprenhar pelos ouvidos e não sejam coninhas. #aguentasalgueiromaia




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