Com a mesma ingenuidade de uma criança que, sem saber, gosta de tantas coisas simples, percebi como essas coisas simples fazem tanta diferença e, de repente, tive saudades.
Do rádio-despertador que rodava as "placas" dos numeros;
Das febras no tacho;
Do chilrear das rolas pela manhã;
De ir ao "Bacalhau", ao Pinheiro, à Chamusca e sei lá onde mais;
Dos serões à lareira a derreter chumbo para a pesca;
E a empatar anzóis;
Da pizza no forno de lenha feita com a massa do pão;
De ir à pesca;
Dos jogos de futebol ao serão;
E do espelho para ver a TV ao longe;
Da revista do "Correio da Manhã";
Do som da máquina de costura;
Da TV velha que tive direito a ter no quarto;
Da mesinha de apoio com tampo em acrílico;
Do Rambóia;
Do copo de água morna do esquentador, no inverno;
Da cor e do cheiro dos dias chuva;
De ver passar a ferro a ouvir telefonia;
Das uvas;
Dos gatos da vizinha que me roubavam os brinquedos;
Das barracas;
Das lojas;
Das couves cruas;
Do cheiro da cebolada a cair na marmita de alumínio com tampa vermelha;
Do Chico;
Do jarro de plástico tingido do vinho tinto.
Do baloiço;
Da bicicleta cor de rosa;
Das coisas que me irritavam;
Dos veios da mesa da sala;
Dos copos de estanho;
E do tabuleiro;
Das hóstias feitas de bocados de guardanapos;
Dos crepes;
Dos bolos;
E das mistelas inventadas;
Da ventoinha;
Dos azulejos laranja da cozinha, dos azuis do WC e dos verdes da entrada;
E da sala pintada de verde;
Do vídeo;
Das taças da pesca;
Do cheiro a gasolina;
De dormir no sofá;
De ver pintar as unhas à porta do quintal;
Do batom que era tão vermelho quanto o verniz;
Da caixa do pão;
Da serradura;
Da planta da casa, com piscina;
Do tanque;
Do pão, das merendeiras, dos bolos de cabeça, dos de cozinha e até do bolo rei;
Do forno;
Da cancela do portão;
Da flor de plástico e da chave do contador da água;
Das canas da pesca e do fio de côco que roubava para os colares de missangas;
Dos garrafões de vinho;
De desmanchar uma televisão velha;
Do copo tingido pelas aparas de lápis de cor;
Dos cartões de visita;
De cortar o dedo com a navalha, à lareira;
De cortar o meu cabelo e de pintar o das bonecas;
Dos vizinhos;
Do portão preto em chapa onde fazia bolas de sabão;
Da cameleira;
E dos ortigões;
De ter a ingenuidade de há 20 ou 25 anos atrás para conseguir aproveitar, sem saber, a claridade a entrar pela cozinha logo de manhã;
De ligar para os BVG e dizer "Daqui é da casa do Sr. Estorninho, posso falar com a minha mãe?"
E de tantas outras coisas que já não se vão repetir e que só eu sei, senti, cheirei, saboreei, vivi. Só eu. Eu e mais ninguém. E, por isso, coisas que só eu compreendo. Como o copo de água do esquentador ou desmanchar a televisão.
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